O Relato da Minha Depressão
Era o final do ano de 2015, ministerialmente eu vinha de uma jornada comum a muitos pastores jovens. Eu já havia assumido muitas lideranças na igreja local, havia concluído o seminário e uma especialização, passei com êxito pelo exame teológico, pelo período probatório e pela esperada ordenação. Eu estava com 31 anos e era o pastor auxiliar, membro da diretoria de uma igreja tradicional de nossa denominação. Os compromissos foram se avolumando, ao mesmo tempo que eu tinha meus compromissos na igreja local eu era também professor e coordenador pedagógico de um seminário, atividades que eram muito significativas, mas que oneravam muito a minha semana… paralelo a isso eu estava envolvido como um dos plantadores de uma nova igreja no centro de nossa cidade, esse processo demandou muita energia física, espiritual e emocional. Como se já não bastasse ainda tinham todas as preocupações e pressões incessantes relacionadas a minha vida profissional, uma vez que eu não era, e não sou, um pastor denominado como integral. Em casa, na minha família, minha esposa estava grávida de nosso segundo filho que nasceu em fevereiro de 2016.
Com tantas atividades nas quais eu estava envolvido me sentia muito culpado por não estar desfrutando adequadamente desse período ímpar da gestação de minha esposa.
Com esse volume de coisas concentradas sobre mim bastou uma gota d’água para o copo transbordar. Uma única gota em meu ambiente profissional deu início a uma longa jornada pelos caminhos da depressão e todos os sintomas relacionados a esse quadro. No começo era só uma falta de ânimo, que ao meu ver logo passaria, de repente comecei a ficar muito triste, comecei a chorar constantemente, uma sensação de morte iminente se apoderou de mim, um peso insuportável no meu peito me tirava o ar e me forçava a sair dos ambientes em que eu estava – isso acontecia diversas vezes ao dia – eu não sabia o que era, só sabia que algo muito ruim estava acontecendo comigo, era como se uma laje tivesse caído sobre a minha cabeça e eu não tivesse forças para me erguer. Procurei um médico, um clínico geral, e pedi um check-up urgente, realizei todos os exames possíveis, corri para pegar os resultados e retornei à consulta… eu estava muito mal, lembro-me do médico analisando todos os exames em silêncio – em minha mente ele encontraria algo terrível nos resultados – mas para minha surpresa ele me disse “sua saúde está ótima, você verá a formatura de seus dois filhos”, ao que eu respondi “impossível, hoje mesmo eu quase morri umas três vezes e para eu estar aqui investi um esforço tremendo”, daí veio o diagnóstico “você está com princípio de depressão”.
Nesse momento me veio um primeiro preconceito, como eu? Jovem, pastor, extremamente “ativo na obra de Deus” estava passando por isso? Tive muita vergonha e me escondi. Conversei com minha esposa, com meu melhor amigo e com meu pastor. Pedi licença de todos os cargos que eu ocupava reduzi minha vida aos cuidados com minha família, com a igreja local que estávamos plantando e com minha vida profissional. A partir desse momento me deparei com uma série de quebra de paradigmas. Primeiro levantei a mão, pedi socorro e fui buscar ajuda psicológica, o que na época ainda era visto com olhares reticentes no ambiente religioso que me cercava – um jovem pastor buscando auxílio psicológico. Iniciei o processo psicoterapêutico, tive o privilégio dado por Deus de me tratar uma excelente profissional, muito experiente e humana, fui muito bem acolhido. Meu desejo inicial era tratar apenas os sintomas, ficar bom e dar continuidade a vida e todas as atividades que estavam paralisadas – a experiência de minha psicóloga não me deixou fixar o olhar apenas na resolução superficial dessa dor, ela me conduziu habilmente a examinar o que havia abaixo da superfície.
Foi muito dolorido, mas me lembro que no dia em que reuni coragem e força para colocar a mão na terra e revolver temas relacionados ao meu passado e a minha infância iniciou-se uma nova etapa em minhas sessões semanais, não tenho dúvidas de que esse olhar para o passado foi um divisor de águas no meu tratamento.
Mesmo assim eu continuava com muitos sintomas físicos, mal conseguia dormir, um cansaço tremendo, vivia assustado, com medo da própria sombra, uma das piores coisas era a perda de apetite, eu não conseguia me alimentar adequadamente, o que acarretou uma perda de peso significativa. Em um curto período de tempo eu perdi 11 quilos, o olhar humano da minha psicóloga percebeu isso, ela me disse “você não está se alimentando adequadamente, eu acho importante você buscar ajuda médica, você concorda com isso?” Eu concordei, ela me direcionou a um psiquiatra de confiança que me encaixou prontamente em sua agenda. Eu havia me diminuído para vida de uma forma que não fui capaz de ir sozinho a consulta, chamei minha esposa para ir comigo, como seu eu fosse uma criança com medo de sair sozinho. Fui muito bem atendido, mais uma quebra de paradigma, eu sendo atendido por um psiquiatra… Também fui privilegiado por me consultar com um médico muito experiente. Iniciamos um tratamento e fizemos alguns ajustes na medicação até encontrar uma combinação que funcionasse adequadamente para o meu tipo de organismo. Nesse ponto eu tomei uma das decisões mais sábias de todo esse período, eu tinha consciência de que estava sendo cuidado por excelentes profissionais, minha psicóloga e meu psiquiatra, portanto decidi de uma vez por todas a não pesquisar mais nenhuma informação sobre depressão na internet ou qualquer outro meio, eu já tinha informações mais do que suficientes e resolvi confiar no meu tratamento e perseverar com a minha fé – que diga-se de passagem a essa altura parecia não funcionar e não servir mais para nada.
A situação ainda ficaria um pouco mais nebulosa antes de começar a melhorar. Eu fiz uma pequena viagem para visitar minha família, essa viagem me trouxe um desconforto enorme nesse período, pois eu não fui bem acolhido em meu ambiente familiar – fui julgado, ouvi e vi palavras sendo ditas sobre mim as escondidas – isso tudo se somou ao intenso choque de emoções que eu estava vivendo. Como resultado quando eu retornei da viagem acabei piorando, não conseguia mais sair de casa. Voltei ao consultório de meu médico e relatei a ele todo o ocorrido, a melhor decisão foi optarmos pelo afastamento de minhas atividades profissionais, uma vez que eu estava quase que totalmente improdutivo e correndo um sério risco de me acidentar no percurso de ida e volta para o trabalho que era feito de moto. Mais uma quebra de paradigma, eu que sempre fui tão produtivo, afastado por um laudo psiquiátrico. Fiquei 6 meses afastado, hoje passado algum tempo consigo ver que esse tempo foi extremamente importante para minha cura, eu pude organizar meus pensamentos, foquei no meu tratamento, eu me comprometi com a superação daquela situação. Ao terminar o período de afastamento, já no início de 2017, eu havia pensado o suficiente, não queria mais voltar para aquele local de trabalho, eu estava decidido a iniciar uma nova jornada, estava decidido a libertar as minhas capacidades empreendedoras.
Passei a focar e a direcionar minha energia para esse novo empreendimento, para minha surpresa houve uma erupção de criatividade, aos poucos, lentamente o colorido foi voltando para minha vida.
Meu quadro depressivo durou cerca de dois anos, foi sem dúvida nenhuma o período mais difícil que já passei em minha vida até hoje. Esse período deixou marcas, cicatrizes, porém hoje me sinto muito mais forte – foi como se eu tivesse nascido, agora adulto, de um parto normal. Posso mencionar alguns pontos e dificuldades marcantes desse período, como por exemplo, a falta de conexão que tive com meu filho mais novo nos dois primeiros anos de sua vida, o distanciamento que tive do meu filho mais velho nesse mesmo período, as muitas gripes e viroses que contrai por estar com a imunidade baixa, e a vontade constante de morrer. Muitas vezes liguei para o CVV (Centro de Valorização a Vida) simplesmente para conversar, eu tinha minha esposa e amigos a quem poderia recorrer, mas como o quadro se prolongara eu já me constrangia por ficar importunando sempre com o mesmo assunto, portanto preferia recorrer ao CVV. Participei de grupos de encontro e grupos de apoio que também me trouxeram benefícios imensuráveis.
Depois desse período outros quadros menores apareceram, mas me senti muito mais apto a lidar com eles.
Os bons tratamentos para quadros depressivos são longos e caros, nesse ponto posso dizer que também sou muito grato, pois fui muito ajudado, financeiramente falando. Eu persisti, nunca faltei por liberalidade minha a nenhuma sessão de psicoterapia, mesmo quando chovia e eu precisava percorrer um longo caminho de ônibus, valorizei e valorizo cada uma das sessões, todas me trouxeram algum nível de crescimento. Nesse período todo eu me afastei de muitas pessoas e muitas também se afastaram de mim, na verdade passado algum tempo poucos, bem poucos, ficaram por perto. Atualmente, graças a Deus, existe uma consciência maior na maioria dos ambientes religiosos sobre assuntos relacionados a saúde mental e emocional, com alguma frequência sou chamado para falar sobre o meu caso e auxiliar de alguma forma a trazer luz sobre esse assunto.
Sou grato a Deus por sempre ter estado comigo durante essa noite escura que vivi, embora na época eu confesso que não conseguia sentir essa presença. Tenho uma gratidão enorme pelas pessoas que me ajudaram, em especial a minha psicóloga e ao meu psiquiatra, com os quais ainda mantenho visitas regulares. Sou muito grato a minha esposa, por ter sido bondosa, paciente e persistente, sentimos nosso casamento mais forte após superarmos juntos esse período. Sou muito grato aos meus amigos mais próximos, pois se mantiveram amigos no período da dificuldade.
Hoje posso dizer, sem medo de errar, que vivo muito melhor do que antes desse quadro depressivo – não trocaria minha vida de hoje pela minha vida anterior a esse período. A depressão foi uma grande luz no painel da minha existência, me informando que mudanças precisavam ser feitas, que decisões precisavam ser tomadas… Minha vida ganhou um colorido muito especial, meu relacionamento comigo mesmo, com Deus e com o próximo mudou. Atualmente já estou a mais de 2 anos sem medicações, mas optei por continuar com a psicoterapia. Sempre digo que não descarto a possibilidade, caso seja necessário, de algum dia retomar a utilização de algum medicamento, hoje vejo a importância deles nos tratamentos mentais e psiquiátricos – eles me deram a possibilidade de aproveitar muito mais o acompanhamento psicológico que eu tive.
Todo esse sofrimento me tornou muito mais conectado com a vida, mais sensível ao sofrimento humano, mais conectado com minha humanidade, mais conectado com Deus.
Rodrigo
Março/2020