O Amor Escancara a Tampa
Há algum tempo eu escutei a música “Ainda Há Tempo” do artista Criolo, grande artista! Nessa música existe uma frase que desde a primeira vez que me chegou aos ouvidos ficou martelando em minha mente, ela diz assim: “amizade é importante, mas o amor escancara a tampa”. Algumas coisas me impressionam na arte, uma delas é o fato de que um trecho ou uma parte de algo produzido por um artista possa fazer tanto sentido para mim, ao passo que tem tão pouco significado para outra pessoa. Outro aspecto que também me impressiona na arte é que a intenção do artista pode ter sido totalmente diferente daquela que chegou a mim, isso porque o artista como emissor fala até aos olhos, fala até aos ouvidos, fala até ao tato, mas ele não consegue controlar como isso será interpretado dos olhos para dentro, dos ouvidos para dentro, do tato para dentro, ou seja, a interpretação da arte vai depender de inúmeros fatores intangíveis que estão contidos na vida do receptor, daquele que é alcançado por uma obra. Assim o receptor as vezes chora, as vezes ri, as vezes fica chocado ou triste, as reações são as mais diversas e variadas possíveis, e deve ser assim, pois os conteúdos e as nuances de uma vida variam drasticamente de pessoa para pessoa. Essa palavra introdutória serve apenas tenta abrir caminho para o entendimento do que a música “Ainda Há Tempo” produziu em mim, como eu a interpretei dos meus ouvidos para dentro.
O amor escancara a tampa! Essa expressão me fez lembrar dos ajuntamentos com pessoas que amamos, pessoas com as quais convivemos apesar de todas as diferenças. Pensei nas festas de Natal, nos aniversários, nos casamentos, nos nascimentos e porque não nos velórios. Locais e situações que em virtude dos laços familiares e dos laços de amizade sempre encontramos pessoas que fizeram ou que ainda fazem parte de nossa história. São aquelas pessoas que não vemos pessoalmente há um bom tempo, porém bastam poucos minutos juntos e tudo se torna como antes, nada mudou, são as mesmas conversas, as mesmas risadas, ainda existem as mesmas cumplicidades, os mesmos apelidos e também as brincadeiras que só são permitidas entre aqueles que se conhecem bem, são relacionamentos que ao longo dos anos conquistaram liberdade e confiança. Tem aquele primo que cresceu contigo e que te ajudou nas partidas de futebol, tem aquele outro que entrou no mar com o braço engessado – e isso é um segredo guardado até hoje, tem um tio que muito te inspirou pelas suas capacidades empreendedoras, existem os irmãos biológicos entre os quais basta uma troca de olhares para muito ser dito, existem os pais que conhecem até um suspiro diferente de seus filhos, e não podem faltar aqueles amigos que são mais chegados do que irmãos, confidentes de todas as horas, gente boa que sempre nos abençoa com sua presença.
Contudo é inevitável pensar que no meio desses relacionamentos existem muitas diferenças, as vezes profundas diferenças. Existem membros de uma mesma família, de um mesmo grupo de amigos que pertencem a religiões diferentes, que possuem posicionamentos políticos diferentes, que possuem gostos musicais diferentes, que torcem para times diferentes, que possuem estilos de vida totalmente diferentes uns dos outros. Penso que ao olharmos para uma reunião de pessoas como essas e analisarmos apenas essas diferenças que estão ali presentes chegaremos à conclusão de aquela é uma reunião dos improváveis, daqueles que se vivessem, apenas pelas suas religiões, pelos seus posicionamentos políticos, ou vivessem apenas pelos seus gostos musicais, pelos seus times ou mesmo pelos seus estilos de vida jamais estariam juntas num mesmo lugar, são diferenças muito abruptas. Mas o amor escancara a tampa! E apesar de todas essas diferenças, apesar de toda improbabilidade de que tais ajuntamentos, tais reuniões, tais laços e vínculos aconteçam, eles continuam acontecendo. E só persistem, pois quando o amor, o respeito e todos os valores mais nobres são colocados no centro, as diferenças escorrem para periferia e já não são uma prioridade. Porque o amor escancara a tampa eu sou capaz de celebrar no mesmo local com um tio, com um primo, com uma mãe, um irmão ou até um pai com quem tenho profundas diferenças. Eu não preciso passar toda a minha vida ligado a tal pessoa, mas ao estarmos juntos ressaltamos os valores que nos unem e que estão para além de qualquer diferença. O amor que escancara a tampa não é declarado, é velado, é subjetivo, é algo que está nas entrelinhas, mas que funciona! É um compromisso em torno daquilo que nos faz semelhantes, deixando de lado, pelo tempo que for preciso aquilo que nos difere em função de um bem maior – a celebração da vida e da união fraterna.
Rodrigo
Fevereiro/2021